sábado, 14 de janeiro de 2023

De que são feitos os dias?

- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces

e em sinistras alianças...

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Estou ás Escuras


 

As memórias são facturas em teu nome 
 sei que o adeus tem os seus rituais e o teu 
 é deixar-me vazia a despensa dos sonhos

 às vezes pergunto o que fizemos mal 
 vou enviar-te flores todos os outonos podes vir 
 pelas facturas pelo menos as da luz

estou às escuras por causa dos teus rituais 

(Pablo García Casado)

Arte de: Joe Webb "Embace Magritte


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

BLUES DA MORTE DO AMOR

"já ninguém morre de amor, eu uma vez
 andei lá perto, estive mesmo quase" 

(Vasco Graça Moura) -Excerto

 

A MORTE DA ROSA


 Morreu de mau cheiro.

Rosa igual, exata.
Subsistiu à sua beleza,
Sucumbiu à sua fragrância.
Não teve nome: talvez
lhe chamassem Rosaura,
Ou Rosa-fina, ou Rosa
do amor, ou Rosalva;
ou simplesmente Rosa,
como se chama a água.
Mais lhe valeria
ser sempre-viva, Dália,
pensamento com lua
como um ramo de acácia.

Mas ela será eterna:
foi rosa; e isso basta;

Deus a gurde em seu reino
à margem direita do alvorecer.

(Gabriel García Márquez)- 1945

SONETO QUASE INSISTENTE NUMA NOITE DE SERENATAS


 Queria uma mulher de sangue e prata.

Qualquer mulher. Uma mulher qualquer,
quando nas noites de primavera
se ouve distante uma serenata.

Essa música é alma. E mesmo não fosse
verdade tanta mentira seria bom
saber que sua voz sempre retrata
o coração de uma mulher qualquer.

Quero querer com música. E quero
que me queiram com tom verdadeiro
Quase em azul e quase eternamente.

Será porque esse ritmo me arrebata,
ou talvez porque ouvindo serenatas
dói-me o Coração musicalmente.

(Gabriel García Márquez) -1945

sexta-feira, 26 de junho de 2020

POR TODOS OS CAMINHOS DO MUNDO

A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
pelo mundo,
por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
num jardim nocturno,
ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.
Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.
Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.
Não sei caminhos de cor.

(Fernando Namora)- in "Mar de Sargaços"

METAMORFOSE

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.
Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.
E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter…
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.”

(Jorge de Sena)